Sofro de opinião crónica. Felizmente só me acontece uma vez por semana. (Este anacrónico cronista crónico escreve de acordo com um desacordo com o novo acordo ortográfico) SAI AOS DOMINGOS!
16 de Setembro de 2012

Para Beatriz Canas Mendes, procastinar é viver. Mas na adolescência tudo é urgente, nada é adiável.

Qualquer pormenor é uma descoberta que deve ser ponderada, apreciada e avaliada em toda a sua extensão. Quem quer inteiramente viver a experiência não pode dissociar o que sente do que pensa. Porque, por mais que se queira fazer crê-lo, não é possível separar o prazer da razão.

E no entanto a adolescência é a descoberta do mundo e da vida, das potencialidades do corpo, do sexo, das relações, das pessoas: de si e dos outros. Que tem isso a ver com a razão? Como ponderar?

Sim, tudo é urgente. Procastinar é viver aos 50 anos. Mas aos 15 procrastinar é absolutamente impossível; e o extremo é a medida certa:

O extremo da paixão, o extremo dos desgosto, o extremo do tédio, o extremo da fúria, da indignação, da esperança, da expectativa, da ceteza, da dúvida, da aventura, do medo…

O adolescente precisa do extremo. Sente-se senhor de si, sabe tudo, é dono do mundo e quer apenas crescer o mais depressa possível para gozar em plena liberdade a sua capacidade de experimentar tudo o mais depressa e intensamente possível. O que consegue fazê-lo, ou consegue passar a impressão de conseguir fazê-lo é a miúda da moda, o miúdo "fixe" com quem todos querem estar e falar.

O outro, que não sabe viver o extremo, nem quer, nem consegue, querendo, e que tem outros interesses menos imediatos, é o geek,  o intelectual. Este é ostracizado. É sobre ele que Beatriz nos fala o seu post Os Intelectualóides, datado de 10 de Setembro de 2012:

 

O ciclo de marginalização do intelectualóide inicia-se exactamente no momento em que este começa a conviver regularmente com pessoas alegadamente normais. Até então, talvez ele também o tenha sido, à semelhança dos restantes, mas os sintomas de que existem diferenças nunca lhe passam despercebidos, ainda que os que o rodeiam possam não as descobrir com facilidade. O intelectualóide sente-se diferente, ora não digno de permanecer na companhia dos seus pares, ora demasiado superior para que a isso se sujeite, e, a partir desse momento de revelação, decide passar a viver num mundo paralelo.

   Ora, o intelectualóide ainda criança, muito novo e inexperiente, desenvolve-se de modo diferente das outras crianças. As suas brincadeiras baseiam-se, de preferência, em reproduções fiéis do universo dos adultos, das suas conversas e empolgantes vidas – inevitavelmente misturadas com a ingénua imaginação de alguém da sua tenra idade - pois quem é grande é que sabe, eles é que têm razão e as outras crianças são parvas, dado que só se interessam por coisas estúpidas e sem significado (nesta situação, o intelectualóide revela já um precoce sentimento de superioridade de si próprio em relação a terceiros, adoptando também uma espécie de modelo de comportamento de alguém que admira profundamente).

   É deste modo que o intelectualóide vai crescendo, sem nunca se identificar com os seus pares. Com eles, não partilha opiniões, pensamentos, jogos, gostos musicais, televisivos ou literários, até porque os outros ainda nem sequer abriram um livro na vida, ao contrário dele, que já leu cerca de trinta livros, sete dos quais são os da saga do Harry Potter, que devorou de cinco a vinte vezes cada um, sem exagero. Os miúdos da sua idade só querem é bola e Playstation (ou Game Boy), mas, para ele, esforço físico é algo inteiramente desnecessário à sua sobrevivência, e, sinceramente, nunca foi muito bom a jogar aos Pokemons, ao Super Mario ou ao Sonic, pelo que são igualmente dispensáveis.

   Já o intelectualóide adolescente começa, aos poucos, a reconhecer que existe algo de errado na sua pessoa e a admitir que é provável que tenha alguma culpa por não ser socialmente bem-vindo. Há uma pequena possibilidade de a culpa não ser somente do resto do planeta.

   Então, a partir desta ideia tão inteligente, o intelectualóide começa a desejar ser um pouco menos parecido consigo mesmo. Progressivamente, vai adoptando alguns hábitos e tendências dos que, outrora, menosprezara. Tenta vestir-se como eles (cores pouco berrantes e que condigam umas com as outras), falar como eles (um impropério a cada duas frases), a viver como eles (sem objectivo nenhum a não ser pertencer a uma rede social e excrever axim) e a dar-se com eles (esta parte corre menos bem, porque os seus pais não permitem que saia à noite para bares e discotecas com os inconscientes dos seus colegas de escola).

   Se o intelectualóide for rapaz, mais cedo ou mais tarde apercebe-se de que não tem jeito para cativar o sexo oposto; se o intelectualóide for rapariga, vai demorar imenso tempo a habituar-se à ideia de que aqueles piropos que lhe tinham mandado eram, afinal, a gozar com ela.

   O intelectualóide adolescente percebe, pela primeira vez, que não tem realmente nada a ver com os jovens normais e que, se não se esforçar à séria, passará o resto da sua vida a ser um falhado.

   Entretanto, o intelectualóide muda de escola, pois passou para o ensino secundário. Tem a oportunidade de conhecer novas caras e conviver com elas num ambiente totalmente distinto daquele em que tinha estado até então. Agarrando-se à única chance que tem de lutar por se tornar uma pessoa diferente, melhor, faz de tudo para se sentir confortável nesta nova vida que lhe foi oferecida. Quer sentir-se acolhido e desejado, mais igual e menos diferente, destacar-se por mérito e não por ser um bicho anti-social.

   Com os seus novos colegas, na sua nova escola, sente-se muito mais livre para explorar a sua personalidade. Apesar de, a pouco e pouco, se identificar mais com os outros jovens, aprende a gostar cada vez mais de si próprio. Adquire um estilo pessoal, cimenta os seus valores, estipula o que é mais importante para si. A puberdade costuma ajudar. Com o despontar desta auto-estima, surge o orgulho em sempre ter sido quem é e o ciclo de rejeição termina. À medida que cresce, conhece também mais intelectualóides, fazendo-o ver que, afinal, nunca fora o único.

   Apesar do seu percurso irregular e, por vezes, um pouco triste e solitário, o intelectualóide aprendeu a ser feliz. Pode não ter sido da maneira mais fácil, mas valeu a pena. Aprendeu a distinguir o bem do mal, a verdade da falsidade e a apreciar os obstáculos da vida como nenhuma outra pessoa. Para si, são os pormenores que contam, porque foram eles que sempre o ajudaram a ser positivo nos momentos mais difíceis.

   Com o tempo, o intelectualóide pode vir a alcançar o sucesso e a plena realização pessoal, reconhecendo, do mesmo modo, que ainda tem muito para aprender. No entanto, sabe bem o que vale e não se rebaixa perante nenhum comentário negativo, daqueles que, outrora, o fizeram vergar perante outrem com menos valor. O intelectualóide vai ficando cada vez mais parecido com os seus pares enquanto, no fundo, tem a eterna consciência de que um intelectualóide será sempre um intelectualóide e que gozar desse estatuto não é um fardo, mas sim um privilégio. E que privilegiado ele é!


Ser intelectual é efectivamente um privilégio. Mas um privilégio muito solitário. Para o intelectualóide, procrastinar torna-se o único modo de viver. A sociedade aparta-o do que é imediato.

publicado por Miguel João Ferreira às 15:29
em primeiro lugar, agradeço imenso mais uma vez por teres escolhido uma crónica minha para escreveres outra tua - o que até tem a sua piada, não é verdade? é realmente um privilégio! apesar de, em certas passagens, não concordar muito contigo (penso que, mesmo na adolescência, procrastinar é possível e tem o seu encanto), fiquei bastante satisfeita com o "resultado final" (se é que lhe posso chamar isso). para finalizar, hás-de me explicar o que pretendes afirmar quando referes que, ao intelectualóide só lhe resta procrastinar, dado que "a sociedade o aparta do que é imediato". não vejo como (:

obrigada, como se os agradecimentos nunca fossem suficientes,
Beatriz
BeatrizCM a 16 de Setembro de 2012 às 16:59

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